sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Ontem...


"Ontem tudo era mais belo

a música nas árvores

o vento nos meus cabelos

e nas tuas mãos estendidas o sol."


Agota Kristof


(Foto: Caminhada à Abadia.)

Querer a Lua...


"O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter."


Fernando Pessoa in "O Livro do Desassossego




(Foto: Paisagem nocturna, Chaves.)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Aqui onde o exílio dói...



Aqui onde o exílio

dói como agulhas fundas,

esperarei por ti

até que todas as coisas sejam mudas.


Até que uma pedra irrompa

e floresça.

Até que um pássaro me saia da garganta

e no silêncio desapareça.


Eugénio de Andrade


(Foto: Trilho Abadia-São Bentinho.)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007



Escrevo-te de perto, como se a mão

te fosse objecto breve aflorado,

como se da rua te chegasse

a certeza pequena para a compra

dos minutos seguintes. De perto

como o sol, como a cigarra.

Como um silêncio cheio

que te viesse aos olhos de manhã

e amar-te fosse a roupa

escolhida ao começar o dia.


Pedro Tamen


(Foto: Pormenor casa da aldeia.)

...um ramo partido não mata uma árvore...



Se uma pausa não é o fim

E o silêncio não é ausência,

Se um ramo partido não mata uma árvore,

um amor que é perdido, será acabado?


Ana Hatherly


(Foto: A caminho da Abadia.)

domingo, 2 de dezembro de 2007

...ser cem vezes mais sombra que a sombra...



Sonhei tanto contigo,
caminhei tanto contigo, falei tanto,
amei tanto a tua sombra
que já não me resta nada de ti.

Só me resta ser uma sombra entre as sombras,
ser cem vezes mais sombra que a sombra,
ser a sombra que virá e voltará a vir
na tua vida ensolarada.

Robert Desnos


(Foto: Auto-retrato.)

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A medida do meu tempo...


Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.

...

É, já sei, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir a tua voz,
a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo.

Jorge Luis Borges


(Foto: Pormenor de um quarto, Faial)

A vocação do fogo...

...

Pousas as mãos sobre o meu rosto,

e vais partir,

sem nada me dizer,

pois só quiseste despertar em mim

a vocação do fogo ou do orvalho.

E devagar, sem te voltares,

pelos espelhos entras na noite acessa.

Eugénio de Andrade



(Foto: Forno a lenha, casa da aldeia.)

Cuidado!


Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.

Casimiro de Brito

(Foto: O meu gato, o Bilhó.)


IV

Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.

Fiama hasse pais brandão

(Foto: Praia de Porto Pim, Faial.)

domingo, 11 de novembro de 2007

O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos...



(Foto: Autro Retrato.)

O cansaço...


O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.

Fernando Pessoa


(Foto: Retrato - Avô Materno - na casa da aldeia.)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Tudo se funde e confunde.


Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

(Foto: Valdanta)

domingo, 21 de outubro de 2007

A verdade é que fomos feitos do mesmo sangue violento e humilde



A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humilde

A verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelas

A verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.

Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para amando eu possa conservar
o meu coração puro.

As ruas hoje pareciam mais largas
e mais claras

As casas e as pessoas
pareciam diferentes

Foi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.

Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justas

E fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.

O amor substitui
o Sol que tudo ilumina.

Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.

Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonha

Vês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua alma

Por que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?

Raul de Carvalho

(Foto: Centro Cultural de Paredes de Coura, durante o Festival.)

sábado, 20 de outubro de 2007

"Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada.
Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come."


Ana Hatherly

Uma espécie de paraiso...


"Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria."


Jorge Luis Borges


(Foto: Estante da Biblioteca Municipal de Esposende. Tirada por "N." e trabalhada por mim.)

Quando a lua vier tocar-me




Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo apaga
a marca dos teus passos por sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu partiste e no meu leite crescem folhas sangue.
A velocidade do sangue é tu partiste.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é leito de tu teres partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de gotas do teu sangue
e a irisada sombra do meu leito é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.


Ana Hatherly

(Foto: Passeio nocturno, Faial.)

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.

José Régio, Poemas de Deus e do Diabo


(Foto: Miguel e Graça de Regresso à Abadia.)